terça-feira, 27 de dezembro de 2022

COLABORAÇÃO PREMIADA

“O combate à moderna criminalidade organizada, em razão de suas características - em especial, o alto poder de intimidação por meio da lei do silêncio (omertà das organizações mafiosas) e a cultura da supressão de provas -, requer a adoção de meios excepcionais de investigação, diante da insuficiência dos métodos tradicionais.

Os desafios impostos por esta nova forma de criminalidade deram ensejo ao aprofundamento do modelo consensual de justiça na seara criminal, no qual se insere o acordo de colaboração premiada, cuja natureza de negócio jurídico processual bilateral e personalíssimo já foi reforçada pelo STF (HC n. 127.483, relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe de 3/2/2016.

Neste novo modelo, respeitadas as balizas legais, a autonomia da vontade das partes, permeada pelo princípio da boa-fé objetiva e pelo dever de lealdade, adquire especial relevo. Deve ser superada a tradicional visão de que, por tratar de interesses indisponíveis, o processo penal encontra-se imune à autonomia privada de vontade.

Na seara penal, a própria Constituição da República de 1988, ao prever a criação dos juizados especiais criminais, com a expressa admissão da transação penal (art. 98, I), chancelou a viabilidade do modelo consensual de justiça.

Isso não significa que a adoção desse novo modelo de justiça negocial confere liberdade ampla às partes, notadamente em razão da presença do Estado em um dos polos da avença e do inegável interesse público subjacente ao processo penal.

Esta discricionariedade regrada dos órgãos de investigação nas tratativas dos acordos dá origem ao argumento da aparente violação do princípio da legalidade penal estrita, como uma das principais objeções à possibilidade de fixação de sanções penais atípicas.

Cumpre observar que o princípio da legalidade é uma garantia constitucional que milita em favor do acusado perante o poder de punir do Estado, não podendo ser usado para prejudicá-lo, sob pena de inversão da lógica dos direitos fundamentais.

O ponto sensível, ao que tudo indica, não constitui verdadeiramente a suposta violação do princípio da legalidade penal em si, mas sim o fato de que o colaborador é, em essência, um criminoso e, sendo assim, não pode gozar de benefícios não previstos em lei, que sejam aptos, por via reflexa, a prejudicar a esfera jurídica de terceiros (delatados).

No entanto, o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LV), assegurado a todos os investigados, desdobra-se no direito à informação, no direito de manifestação e no direito de ver seus argumentos considerados, mas não na prerrogativa de afetar negativamente a situação jurídica de terceiros, especialmente daqueles que atuam em conformidade com a lei, colaborando com a Justiça.

Do ponto de vista do colaborador (igualmente investigado), a colaboração premiada também deflui diretamente do princípio da ampla defesa, conferindo-lhe maior amplitude. O inegável cálculo utilitarista de custo-benefício que o agente criminoso realiza ao colaborar com a Justiça compõe parte de sua estratégia defensiva, enriquecendo as potencialidades de sua mais abrangente defesa.

A colaboração premiada - embora muito discutida sob o enfoque ético - é um relevante e necessário instrumento de direito processual penal.

Existem mecanismos de controle destinados a evitar abusos, alguns deles já previstos na Lei n. 12.850/2013, tais como: i) a necessidade de homologação judicial (art. 4º, § 7º); ii) a renúncia ao direito ao silêncio e o compromisso de dizer a verdade (art. 4º, § 14); iii) a rescisão do acordo em caso de omissão dolosa sobre os fatos objeto da colaboração (art. 4º, § 17), iv) a obrigação de cessar o envolvimento em conduta ilícita (art. 4º, § 18); e v) a previsão do tipo penal do art. 19.

Há, sem dúvida, um equilíbrio delicado a ser alcançado. O sistema deve ser atrativo ao agente, a ponto de estimulá-lo a abandonar as atividades criminosas e a colaborar com a persecução penal. Ao mesmo tempo, deve evitar o comprometimento do senso comum de justiça ao transmitir à sociedade a mensagem de que é possível ao criminoso escapar da punição, "comprando" sua liberdade com informações de duvidoso benefício ao resultado útil do processo penal.

A melhor solução não parece repousar na vedação, em abstrato, dos benefícios atípicos, mas sim no cuidadoso sopesamento da extensão dos benefícios pactuados diante da gravidade do fato criminoso e da eficácia da colaboração, conforme previsão do art. 4º, § 1º, da Lei n. 12.850/2013.

Quanto à previsão de nulidade de cláusulas que alterem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena ou os requisitos de progressão de regime (art. 4º, § 7º, II, da Lei n. 12.850/2013), o próprio legislador autorizou a fixação de benefícios mais amplos ao estabelecer que o juiz poderá conceder perdão judicial ou substituir a pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos (art. 4º, caput, da Lei n. 12.850/2013).

Se é possível extinguir a punibilidade dos crimes praticados pelo colaborador (perdão judicial) ou isentá-lo de prisão (substituição da pena), com mais razão seria possível aplicar-lhe pena privativa de liberdade com regime de cumprimento mais benéfico.

Não há invalidade, em abstrato, na fixação de sanções penais atípicas, desde que não haja violação da Constituição da República ou do ordenamento jurídico, bem como da moral e da ordem pública. Da mesma forma, em respeito às garantias fundamentais individuais, a sanção premial não pode agravar a situação jurídica do colaborador, com a fixação de penas mais severas do que aquelas previstas abstratamente pelo legislador."

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