“O
combate à moderna criminalidade organizada, em razão de suas características -
em especial, o alto poder de intimidação por meio da lei do silêncio (omertà
das organizações mafiosas) e a cultura da supressão de provas -, requer a
adoção de meios excepcionais de investigação, diante da insuficiência dos métodos
tradicionais.
Os
desafios impostos por esta nova forma de criminalidade deram ensejo ao
aprofundamento do modelo consensual de justiça na seara criminal, no qual se
insere o acordo de colaboração premiada, cuja natureza de
negócio jurídico processual bilateral e personalíssimo já foi
reforçada pelo STF (HC n. 127.483, relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal
Pleno, DJe de 3/2/2016.
Neste
novo modelo, respeitadas as balizas legais, a autonomia da vontade das partes,
permeada pelo princípio da boa-fé objetiva e pelo dever de lealdade, adquire
especial relevo. Deve ser superada a tradicional visão de que, por tratar de
interesses indisponíveis, o processo penal encontra-se imune à autonomia privada
de vontade.
Na seara
penal, a própria Constituição da República de 1988, ao prever a criação dos
juizados especiais criminais, com a expressa admissão da transação penal (art.
98, I), chancelou a viabilidade do modelo consensual de justiça.
Isso não
significa que a adoção desse novo modelo de justiça negocial confere liberdade
ampla às partes, notadamente em razão da presença do Estado em um dos polos da
avença e do inegável interesse público subjacente ao processo penal.
Esta
discricionariedade regrada dos órgãos de investigação nas tratativas dos
acordos dá origem ao argumento da aparente violação do princípio da legalidade
penal estrita, como uma das principais objeções à possibilidade de fixação de
sanções penais atípicas.
Cumpre
observar que o princípio da legalidade é uma garantia constitucional que milita
em favor do acusado perante o poder de punir do Estado, não podendo ser usado
para prejudicá-lo, sob pena de inversão da lógica dos direitos fundamentais.
O ponto
sensível, ao que tudo indica, não constitui verdadeiramente a suposta violação
do princípio da legalidade penal em si, mas sim o fato de que o colaborador é,
em essência, um criminoso e, sendo assim, não pode gozar de benefícios não
previstos em lei, que sejam aptos, por via reflexa, a prejudicar a esfera jurídica
de terceiros (delatados).
No
entanto, o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º,
LV), assegurado a todos os investigados, desdobra-se no direito à informação,
no direito de manifestação e no direito de ver seus argumentos considerados,
mas não na prerrogativa de afetar negativamente a situação jurídica de
terceiros, especialmente daqueles que atuam em conformidade com a lei,
colaborando com a Justiça.
Do ponto
de vista do colaborador (igualmente investigado), a colaboração premiada também
deflui diretamente do princípio da ampla defesa, conferindo-lhe maior
amplitude. O inegável cálculo utilitarista de custo-benefício que o agente
criminoso realiza ao colaborar com a Justiça compõe parte de sua estratégia
defensiva, enriquecendo as potencialidades de sua mais abrangente defesa.
A
colaboração premiada - embora muito discutida sob o enfoque ético - é um
relevante e necessário instrumento de direito processual penal.
Existem
mecanismos de controle destinados a evitar abusos, alguns deles já previstos na
Lei n. 12.850/2013, tais como: i) a necessidade de homologação judicial (art.
4º, § 7º); ii) a renúncia ao direito ao silêncio e o compromisso de dizer a
verdade (art. 4º, § 14); iii) a rescisão do acordo em caso de omissão dolosa
sobre os fatos objeto da colaboração (art. 4º, § 17), iv) a obrigação de cessar
o envolvimento em conduta ilícita (art. 4º, § 18); e v) a previsão do tipo
penal do art. 19.
Há, sem
dúvida, um equilíbrio delicado a ser alcançado. O sistema deve ser atrativo ao
agente, a ponto de estimulá-lo a abandonar as atividades criminosas e a
colaborar com a persecução penal. Ao mesmo tempo, deve evitar o comprometimento
do senso comum de justiça ao transmitir à sociedade a mensagem de que é
possível ao criminoso escapar da punição, "comprando" sua liberdade
com informações de duvidoso benefício ao resultado útil do processo penal.
A melhor
solução não parece repousar na vedação, em abstrato, dos benefícios atípicos,
mas sim no cuidadoso sopesamento da extensão dos benefícios pactuados diante da
gravidade do fato criminoso e da eficácia da colaboração, conforme previsão do
art. 4º, § 1º, da Lei n. 12.850/2013.
Quanto à
previsão de nulidade de cláusulas que alterem o critério de definição do regime
inicial de cumprimento de pena ou os requisitos de progressão de regime (art.
4º, § 7º, II, da Lei n. 12.850/2013), o próprio legislador autorizou a fixação
de benefícios mais amplos ao estabelecer que o juiz poderá conceder perdão
judicial ou substituir a pena privativa de liberdade por pena restritiva de
direitos (art. 4º, caput, da Lei n. 12.850/2013).
Se é
possível extinguir a punibilidade dos crimes praticados pelo colaborador
(perdão judicial) ou isentá-lo de prisão (substituição da pena), com mais razão
seria possível aplicar-lhe pena privativa de liberdade com regime de
cumprimento mais benéfico.
Não há
invalidade, em abstrato, na fixação de sanções penais atípicas, desde que não
haja violação da Constituição da República ou do ordenamento jurídico, bem como
da moral e da ordem pública. Da mesma forma, em respeito às garantias
fundamentais individuais, a sanção premial não pode agravar a situação jurídica
do colaborador, com a fixação de penas mais severas do que aquelas previstas
abstratamente pelo legislador."